domingo, julho 31

DIREITO AMBIENTAL


A poluição sonora decorrente da circulação de veículos

Sebastião Flávio da Silva Filho




O artigo trata da poluição sonora como uma das conseqüências da vida moderna, cuja importância costuma ser negligenciada pela sociedade, mas que causa enormes danos à mesma e ao meio ambiente. O autor observa que até o Estado exerce o papel de agente poluidor, e muitas vezes os governantes e a própria Justiça agem sob uma concepção elitista na interpretação de normas protetoras do conforto auditivo. Como instrumento jurídico de combate à poluição sonora, o autor aponta a Lei nº 7.347/85, que confere legitimação às associações civis defensoras de interesses difusos para demandar em juízo a reparação de danos ao patrimônio objeto de sua defesa, e sugere ações das quais essas entidades poderiam valer-se.




1 CONCEITO DE POLUIÇÃO SONORA



Para o professor José Afonso da Silva, a poluição sonora consiste na emissão de barulho, ruídos e sons em limites perturbadores da comodidade auditiva. (SILVA, pp. 470-471).

Está na mesma lição que as fontes naturais de emissão de ruído geralmente não causam poluição sonora, e apenas mal estar passageiro, dado o caráter intermitente ou ocasional do barulho emanado delas (já que é de freqüência curta no tempo, como o trovão). Já as fontes artificiais de emissão de ruído são geralmente as causadoras de poluição sonora, como ocorre com as emanações provindas das atividades humanas nas aglomerações urbanas, porque é pela intensidade e ininterrupção do barulho que o ouvido humano é molestado (SILVA, p. 471).

Enfim, a poluição sonora ocorre quando, além de intenso o ruído, é ele também ininterrupto, constante, freqüente, com o que o ouvido humano nunca se acostumará, ao contrário do que julga o leigo. Pode-se dormir sob barulho intenso, mas o sono não será reparador das energias gastas, como é a conclusão da ciência médica.



2 A INDIFERENÇA DA SOCIEDADE À POLUIÇÃO SONORA



É surpreendente a indiferença popular quanto aos problemas decorrentes da poluição sonora, embora seja esta fator de tanto desconforto auditivo e mesmo fonte de irreparáveis danos à saúde. O ruído intenso e ininterrupto causa tensão nervosa que, a longo prazo, pode ocasionar de surdez até os mais graves distúrbios neuropsíquicos, sem contar os riscos de hipertensão arterial e enfarte; também reduz as resistências físicas do homem e inibe a concentração mental. Segundo Schopenhauer, o ruído é o assassino do pensamento, e assim acaba sendo paradoxal ver a famosa Faculdade do Largo São Francisco, em São Paulo, assolada por tanto barulho, como se ali não fosse um grande laboratório das mais inovadoras idéias que marcam a história do Brasil. É inacreditável como a grande massa de intelectuais consegue ainda atuar sob diversa gama de sons que se misturam no centro da cidade de São Paulo. Isso é até hilariante, porque os trabalhadores braçais atuam em ambientes mais salubres e são privilegiados por constantes fiscalizações do Ministério do Trabalho no controle da poluição decorrente das indústrias fabris, salubridade essa que os próprios fiscais não têm.

Também causa espécime como, mesmo a classe mais privilegiada da sociedade, é pouco exigente quanto ao conforto auditivo, porque as incorporadoras imobiliárias ainda lançam, com sucesso, prédios de apartamento de alto luxo em bairros já tão comprometidos com o barulho, como o de Higienópolis e o Jardim Paulista, em São Paulo.



3 O ESTADO É TAMBÉM AGENTE POLUIDOR



Não bastasse a indiferença da sociedade à poluição sonora, vem o Estado moderno se revelar grande estimulador de hábitos poluidores, e a malha viária das cidades grandes é um exemplo disso. Não são raras as vias públicas alargadas, com muitas as expressas e as elevadas, mas sempre em locais já de há muito urbanizados ou inclinados à urbanização — fruto, sem dúvida, de política de favorecimentos ao transporte individual, com profundo descaso aos direitos dos que vivem em locais que não apresentam a menor condição de relativo conforto. Parece mesmo reinar verdadeira insanidade mental, porque embora a Avenida São João, em São Paulo, registre índices de ruídos na casa de 90 decibéis — fator de lesões neurológicas inevitáveis — há três parques infantis construídos às suas margens. As aberrações apontadas podem decorrer do fato de os administradores públicos normalmente pertencerem às classes sociais mais abastadas, não sofrendo, portanto, as vicissitudes desses desvarios. Residem em bairros afastados do centro e se utilizam de veículos particulares para sua locomoção. Essas classes possuem concepções elitistas sobre bem-comum, razão pela qual a ótica que tem inspirado eleições de obras e serviços prioritários está sempre voltada àqueles de que se beneficiam mais diretamente. Enormes investimentos na construção das complexas malhas viárias são feitos para atender quase exclusivamente ao transporte individual.



4 A EXEGESE ELITISTA NA INTERPRETAÇÃO DAS NORMAS PROTETORAS DO CONFORTO AUDITIVO



A propósito dessa insensibilidade das classes dirigentes para os sérios gravames que sua administração causa à grande parcela da população, é interessante lembrar que a própria Prefeitura do Município de São Paulo mantém concepção elitista e distorcida quando interpreta sua Lei de Zoneamento. De fato, contra reclamações de moradores de vias públicas com excesso de tráfego, tem respondido ser impossível tomar os ônus de que se queixa a população. Há um desprezo à própria classificação da lei que, ao instituir as chamadas zonas mistas, somente objetivou amenizar esses piques de insuportabilidade aos moradores. A característica dessa categoria de zona é justamente ainda tornar possível viver nos seus limites, com razoável sossego, diversamente do que ocorre com as zonas predominantemente industriais. O certo é que, nas chamadas zonas mistas, os moradores apenas têm de conviver com determinadas atividades menos nocivas, como a exploração de bares, oficinas mecânicas, e outras que, apesar de incômodas, não tornam insuportável o ambiente.

Mesmo na Justiça é notada, às vezes, essa concepção elitista. Sílvio Rodrigues dá notícia de dois julgados que bem a revelam. O primeiro não acolheu queixa de morador da Avenida São João, em São Paulo, contra a instalação de cabaré que propagava ruído de seu interior e dava ensejo a muita algazarra na rua; o segundo mandou encerrar atividade de certo dancing em andar térreo de prédio de apartamentos situado em bairro residencial. No primeiro caso, foi considerado que o morador escolheu voluntariamente local ruidoso para viver, pelo que não podia se queixar dos incômodos de que reclamava, no ver do acórdão, naturais para a região; no segundo, prevaleceu o entendimento de que o morador de prédio de apartamentos em zona residencial não poderia ter seu sossego perturbado. São decisões distanciadas de um verdadeiro senso de justiça, porque, segundo as tais, quem é pobre será obrigado a sofrer sempre, por nunca poder viver em bairros tipicamente residenciais — estes sempre alvo de especulação imobiliária. Já o reverso ocorre com quem possui melhor poder aquisitivo, porque além de reunir condições de adquirir imóveis em bairros silenciosos, pode ainda locomover-se confortavelmente, sem peso expressivo no orçamento. Nos exemplos apontados, data venia, o correto seria seguir doutrina já consagrada no exterior, segundo a qual o dono do cabaré estaria obrigado a equipar o ambiente interno da casa noturna com material capaz de abafar a propagação de ruído. Não estaria também afastada a possibilidade de encerramento de suas atividades, por não serem essas de interesse social. Se o Brasil vivesse consciência já adiantada de preservação do meio ambiente, não deixaria de aplicar, no caso versado, a idéia de que a pré-ocupação determina a destinação do local, ou seja, prevalecerá a atividade que predominou inicialmente e, sem dúvida, a Avenida São João, já citada, foi mais conhecida sempre como residencial, como ainda não deixa de ser hoje.



5 A POSSIBILIDADE DE COMBATE À POLUIÇÃO PELA INICIATIVA DA SOCIEDADE



A Lei n. 7.347/85 veio trazer interessante inovação ao Direito brasileiro. Além de atribuir legitimação às associações civis defensoras de interesses difusos, para demandar em juízo a reparação de danos ao patrimônio objeto de sua defesa, também as isenta do encargo de antecipar as custas para promoção das respectivas ações. Mais ainda: as referidas associações só responderão pelos honorários advocatícios se ocorrer perda da demanda pela circunstância de ser essa manifestamente infundada. É tradicional que apenas o diretamente lesado postule pela restauração de direito seu; também há obrigatória antecipação das custas para promover o feito e, invariavelmente, são de responsabilidade da parte vencida as verbas da sucumbência.

Foi bastante oportuna a edição da lei, não só pela indiferença do Estado à desenfreada depredação do meio ambiente urbano, mas particularmente porque é esse mesmo Estado o grande estimulador de hábitos poluidores, quando não é o causador direto da poluição. É, sem dúvida, graças às opções políticas das últimas gerações, que São Paulo está incluída entre as capitais mais ruidosas do mundo e na sua atmosfera são atiradas cerca de mil toneladas diárias de detritos poluentes. Está mesmo impossível morar ou circular pelas zonas mais centrais da cidade, tal o ruído existente — sem contar a impregnação do ar com o cheiro acre da fumaça de veículos movidos a óleo diesel.

Com a edição da lei apontada, as entidades defensoras de interesses difusos se armam de poderoso instrumento jurídico para combate aos cruciais problemas comuns hoje nas grandes cidades, para os quais o Poder Público é de todo indiferente; aliás, por culpa desse, muitos dos tais problemas são, em nossos dias, alarmantes.



6 AS VÁRIAS AÇÕES POSSÍVEIS PARA ESSE COMBATE À POLUIÇÃO SONORA



Ação oportuna de que poderiam se valer tais entidades no momento, seria obrigar os municípios a remanejar o tráfego excessivo de veículos de certas vias públicas ditas "corredores de tráfego" — para outras, adjacentes. Já não pode ser mais tolerada carga de trânsito como a existente hoje na Avenida São João em São Paulo, por exemplo, — onde o índice de ruídos atinge 90 decibéis, fatos não só de desassossego aos moradores lindeiros, mas também de enormes gravames à saúde. Condói saber que nesses locais vivem milhares de criancinhas sobressaltadas dia e noite pelo estrondoso e incessante barulho da circulação ininterrupta de volumosa frota de todo tipo de veículo. Chega mesmo a ser incompreensível como os comerciários suportam trabalhar sob tais condições.

O fundamento para a referida ação está na própria Constituição Federal. De fato, constitui direito-dever do município zelar pela conveniente circulação urbana de veículos, preservando o sistema viário contra excessos de tráfego. É nesse sentido a lição de Hely Lopes Meirelles. Para o caso da cidade de São Paulo, há ainda a Lei n. 8.106/74, que estabelece limites máximos de ruídos toleráveis que, se obedecidos, ensejariam à população ideal conforto auditivo. Não favorece o município a alegação de que não lhe cabe responsabilidade porque foi voluntária a escolha, por parte do cidadão, de local ruidoso para viver. Ocorre que, a partir do momento em que foi permitido o assentamento de residência às margens de via pública, o município assume o dever de assegurar ao morador a necessária tranqüilidade, como também de evitar riscos à saúde da população. Segundo lição do citado professor, Embora seja certo que quem elege cidade grande para viver deve suportar o ônus que isso apresenta, todavia é dever do Poder Público amenizar o quanto possível a propagação de ruídos incômodos aos habitantes, principalmente em horário de repouso. O rumor das indústrias, a agitação do comércio se impõem aos cidadãos como ônus normais da vida urbana, em contraprestação das múltiplas vantagens que essas atividades proporcionam, mas o ruído anormal, excessivo, insuportável, principalmente à noite, apresenta-se como antijurídico (MEIRELES, p. 406). Cabe ainda o comezinho princípio de Direito administrativo, segundo o qual os serviços e obras públicas não podem, a pretexto de beneficiar a coletividade, pesar gravosamente para determinada parcela da população.

Outra ação deveras oportuna seria a retirada ou a redução, no mínimo, no tráfego de veículos no centro da cidade de grande movimento. É direito irrecusável do cidadão poder exercer sua profissão sem desconfortos intoleráveis e sem sujeição a graves riscos de saúde.

Também não poderia faltar ação no sentido de compelir as empresas exploradoras do transporte coletivo urbano a substituir o equipamento antipoluente dos veículos, sem dúvida inadequado ao ambiente das grandes cidades. Ninguém nega o estrondoso barulho que os coletivos movidos a óleo diesel produzem dia e noite nas cidades de maior densidade demográfica. Tal se deve à substancial concentração desses veículos por reduzidos e acanhados pontos das zonas centrais, mercê da concentração de pessoas por força da atividade econômica ali existente. A pressão sonora aumenta (porque muitos são os motores funcionando a um só tempo) e também acaba sendo incessante por causa da circulação ininterrupta gerada pela quantidade de veículos e pela falta de boa fluidez do tráfego.

Poderiam as permissionárias argumentar que o equipamento antipoluente dos coletivos obedece às especificações impostas pelo Governo Federal, pelo que não se acham obrigadas a promover a substituição. Todavia, essa regulamentação não prevalece contra o peculiar interesse dos grandes aglomerados urbanos, para os quais os limites devem se situar bem abaixo do nível convencional em face das particularidades já apontadas. Com efeito, houvesse razoável intervalo na circulação entre um veículo e outro e, apesar de intenso, o barulho não traria o desconforto auditivo tão penoso como o verificado nas grandes cidades.

À evidência, pode o município dispor sobre esse assunto com absoluta autonomia, por ser matéria de seu peculiar interesse. Ensina o renomado professor Hely Lopes Meireles: De um modo geral cabe à União legislar sobre assuntos nacionais de tráfego ou trânsito, ao Estado-membro compete regular e prover os aspectos regionais e a circulação intermunicipal em seu território e ao município cabe a ordenação da circulação e o tráfego local (MEIRELES, p. 362). Anota ainda o doutrinador que assim ocorre na generalidade das nações civilizadas, certamente para viabilizar o primado do interesse social.

Cumpre anotar, também, que se o legislador municipal não dispuser sobre a matéria, ou não atuar o órgão executivo municipal no exercício do seu poder de polícia, cabe ao Poder Judiciário intervir. O fundamento jurídico para isso está em que é direito constitucional do cidadão o de ter preservadas suas condições vitais e o indispensável conforto que exige a natureza humana. Segundo o Desembargador Kasuo Watanabe, direitos como esses decorrem do regime e princípios da Carta Magna, cujas normas não são meramente programáticas, mas outorgam desde logo um direito à qualidade de vida. Conclui o mestre, com apoio da lição do prof. Fábio Konder Comparato, que a Justiça pode atuar em casos de omissão legislativa na edição das normas ordinárias e complementares destinadas a dar eficácia aos dispositivos constitucionais.

Certamente não faltará, nesse tipo de feito, a presença do Poder Público municipal como litisconsorte, para ser compelido a exercer fiscalização eficaz às condições de trafegabilidade da frota de coletivos, ou sofre sanção caso não o faça.

É também irrecusável a ação para compelir o Poder Público — no caso de São Paulo, o próprio município — a exercer atribuição que lhe é inerente e que vem sendo negligenciada de forma clamorosa, qual seja, a de fiscalizar as condições de trafegabilidade da frota de veículos circulante pela cidade. É incompreensível o descaso da apontada municipalidade para os desastrosos abusos de usuários de veículos automotores. Hoje a cidade vive infernizada dia e noite por insuportável poluição sonora trazida pelos veículos mal conservados ou dotados de escapamento dito "esportivo", na verdade, intoleravelmente ruidosos. Residências, hospitais, escolas, áreas de recreação, acabam sendo continuamente assolados por terrível barulho das motocicletas com escapamento aberto ou então pelos ruidosos utilitários mal conservados a transitar sem restrições por qualquer local e horário, sem faltar a esse coro infernal o já incômodo ruídos dos automóveis "populares". Aliás, só mesmo a mais inédita sensação de impunidade poderia ensejar o desenvolvimento de tão anti-social comportamento, generalizado na sociedade brasileira.

Ao cabo, a veloz circulação de veículos pelas cidades, além de trazer enorme perigo ao pedestre, é causa de exacerbação de ruídos. Daí também caber ação no sentido de exigir que o município não só crie obstáculo ao excesso de velocidade, mas exerça enérgica fiscalização. É inegável a omissão do Poder Público a respeito, tanto que se fosse exigido hoje em São Paulo obediência ao Código Nacional de Trânsito — no que diz respeito à velocidade — certamente haveríamos de registrar inédito congestionamento, o que bem revela que os equipamentos urbanos já são estruturados de tal forma que, para ser cumprida sua função, é preciso descumprir a lei.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MEIRELES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981. 723 p.

SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981.



Sebastião Flávio da Silva Filho é juiz de Direito
substituto de Segundo Grau no 1º Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo e membro da Associação de Juízes para a Democracia.